O diretor Terry Gilliam já tinha fama por liderar o hilário grupo de Monty Python quando lançou, em 1985, o filme “Brazil”. Deste modo, a maioria dos espectadores que o procuraram sabia o que esperar de uma comédia que envolvia devaneios, episódios sem lógica, um roteiro central flutuante e críticas contumazes aos nossos mais irracionais costumes sociais e políticos.
Para começar o 11º ano do século 21, é interessante recorrer a uma obra futurista filmada exatamente em 1984, não por acaso o “ano título” do mais popular romance de George Orwell.
Assistindo ao filme de Gilliam com o livro de Orwell nas mãos, é possível ver uma livre adaptação de uma sociedade totalitária, burocrática e vigiada assim como Stanley Kubrick fez com um dos melhores filmes já filmados, “Laranja Mecânica”, do também britânico, Anthony Burgess.
O senso reto, objetivo e até sisudo da narrativa de Orwell ganha uma nova vertente com Terry Gilliam. A primeira cena do filme é um inseto esmagado por uma impressora que muda o mandado de prisão que seria aplicado ao terrorista decadente e técnico em ar condicionado, o senhor Tuttle (interpretado por um quase irreconhecível Robert De Niro). Pelo erro, o prisioneiro se torna o inocente senhor Buttle (Brian Miller).
Na mesma atmosfera da obra de Orwell (no livro, a Londres, que se situa na ficcional Eurásia), a cidade “em algum lugar do século XX” se desintegra por dentro e por fora por ataques de terroristas, que, estranhamente, são patrocinados pelo próprio governo para gerar terror popular.
Assim como Winston Smith em “1984”, o protagonista Sam Lowry (vivido pelo ator Jonathan Pryce) é um burocrata de nível médio e acaba por se envolver com rebeldes por questões românticas. Seu fim é o mesmo de Winston, o esmagamento por um torturador que antes parecia confiável.
Sam é um apreciador da fantasia e como Dom Quixote (para os espectadores, mais um Brancaleone vestido de Ícaro) sai a enfrentar “Godzillas” e monstros japoneses ao estilo Monty Phyton. Tudo ao som da música tema “
Aquarela do Brasil” enquanto ele voa (imaginativamente) como um super-herói angelical para salvar a garota dos seus sonhos (Kim Greist).
Em contrapartida, a mesma moça é “doppelganger”, ou seja, uma duble idêntica à motorista de caminhão que quer corrigir as injustiças contra Buttle e sua família. É como se ele se refugiasse em um mundo interno, mais simples e feliz que a realidade burocrática.
O filme é uma mistura transloucada do totalitarismo stalinista, a paranoia da aniquilação dos americanos durante a guerra fria, a vigilância do Grande Irmão (ao contrário do livro de Orwell, que a vigilância vem de um ente imaterial e das tele-telas, no filme, ele é representado por um grande samurai) e até da busca incondicional da beleza, como, por exemplo, a obsessão da mãe de Sam por cirurgias plásticas.
Ao contrário do humor voltado ao pastiche do Monty Phyton, “Brazil” é uma crítica social (talvez, até influenciada pelo co-roterista Tom Stoppard) com toques de humor.
É um filme com méritos e revés, como uma duração maior que a necessária e uma narrativa que deixa muitíssimas brechas de interpretação, semelhante com “Blade Runner”, de Ridley Scott ou “Estrada Para Perdição”, de David Lynch. Vale mais como prazer estético e, em especial para nós brasileiros, como degustação musical.
Notas extrafilme
— A versão da música de Ary Barroso foi simplificada para se adequar como trilha sonora do filme. O trabalho foi feito por Geoff Muldaur com os vocais de Kate Bush. Veja a versão completa
aqui.
— O ator Robert De Niro queria interpretar Jack, o melhor amigo de Sam, mas Gilliam já havia prometido o papel a Michael Palin. Ele, então, fez uma breve participação como o estranho técnico de ar-condicionado e terrorista Harry Tuttle.
— Na versão distribuída aos Estados Unidos, o filme tem 132 minutos. Na cópia enviada a Europa, o filme tem 10 minutos adicionais, com cenas mais picantes entre Sam e sua amada, além de tomadas que deixam o filme mais inteligível. Uma versão posterior, da década de 90, intitulada nos EUA como “Love Conquers All", tem 94 minutos.
— Terry Gilliam e representantes da distribuidora Universal entraram em atrito durante e depois das filmagens. Um dos motivos da produtora para interferir no filme era a necessidade de construir um filme menos truncando e melhor editado. Críticos e agentes creditam a briga ao pouco acesso da obra ao público, uma vez que foram distribuídas menos cópias que o usual.
— Na época do lançamento, a crítica especializada do “Los Angeles Times” classificou o filme como a “melhor sátira política desde ‘Dr. Fantástico’, de Kubrick”. O “New York Times” também fez analises positivas, relacionado o poder da comédia com temas políticos. Outros como os repórteres do “Chicago Times”, o classificaram como “ruim”, dando-lhe duas de cinco estrelas possíveis.
— O British Film Institute avaliou “Brazil” com o 54º melhor filme de Inglaterra.
João Paulo Teixeira é jornalista.